segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O livro didático e a identificação de Serpentes Venenosas


Pesquisa realizada pela Acadêmica em Ciências Biológicas, Sarah Webber

Com certeza chegará o dia em que, como professores de Biologia, teremos que desfazer inúmeros enganos e preconceitos que nossos alunos tem a respeito das serpentes. Ao longo da história, esses répteis vem desempenhando diversos papéis simbólicos, folclóricos e religiosos dentro das culturas de muitos países, que têm atribuído à eles capacidades que nem sempre correspondem à realidade, entrelaçando esses animais em inverdades e mitos. Cabe aos biólogos repor a verdade sobre esses animais tão injustamente perseguidos, desmistificando os exageros que o povo conta por aí.

O Brasil possui cerca de 361 espécies de serpentes, sendo que dessas, somente 55 são peçonhentas (SBH, 2008). Apesar da sua fauna rica de ofídios, o conhecimento acerca desses animais ainda é limitado, fragmentado e cheio de equívocos. Além da importância ecológica da serpente não ser reconhecida pela maioria dos leigos, que não notam que sua presença é imperativa para o sucesso das cadeias alimentares das quais fazem parte, muitos também espalham, por falta de informação, inverdades sobre esses animais. Diversos conhecimentos populares errados estão tão difundidos que, longe de auxiliar o brasileiro quando este se depara com um dos exemplares da nossa biodiversidade, são responsáveis por aumentar o medo desses animais, causando uma matança desenfreada dos mesmos. Muitos conhecimentos populares também indicam remédios caseiros, benzeduras e procedimentos inadequados quando um acidente ofídico ocorre e, como poderemos notar, esses procedimentos poderão piorar o estado do acidentado, levando o paciente a uma piora do seu quadro clínico, e até mesmo à óbito.

Segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem entre 19 mil a 22 mil acidentes ofídicos por ano no Brasil (RIBEIRO, 1995). Mesmo com esse número expressivo de acidentes com serpentes, ainda não temos programas de divulgação de informações sobre ofidismo em número suficiente para dar conta de educar a população como um todo. Longe disso, continuamos, ano após ano, com números elevados de acidentes ofídicos.

Como podem os brasileiros possuir uma fauna tão cheia de espécies de serpentes, sem ter o mínimo conhecimento sobre estas e saber o que fazer em caso de acidentes, ou como preveni-los?
Um dos fatores que mais contribuem para a dispersão de informações erradas quanto à serpentes e ofidismo está justamente na falta de informação de qualidade na escola (e é aí que os biólogos  que trabalham junto à educação entram). Recentemente, Quirino (2009) realizou um estudo lendo diversas informações sobre esse tema em livros didáticos para Ensino Fundamental e Médio. Obteve como resultado uma quantidade decepcionante de informações erradas nesses livros, o que explicaria, em parte, porque os brasileiros possuem diversas noções equivocadas sobre serpentes da sua fauna nativa. Os livros didáticos trazem diversos erros, incluindo informações focadas no antropocentrismo, e não na ecologia ou preservação. Como professores, chegará o dia em que teremos alunos nos questionando se o que leram em um livro didático está correto ou não.

Entre os conceitos errados mais amplamente difundidos sobre serpentes, está uma tabela bastante comum em livros didáticos, que tem por objetivo relacionar as características de uma serpente peçonhenta e de uma serpente não-peçonhenta, de modo a diferenciá-las com base na sua aparência externa e comportamento:






Na tabela presente nos textos de livros didáticos, os alunos são levados a acreditar em um método de identificação de serpentes que não se aplica a nossa realidade brasileira. Isso porque a tabela foi criada com base em cobras da Europa e África, e não é de espantar que tenha chegado até os nossos livros didáticos porque, afinal de contas, fomos colonizados por portugueses, que são europeus (BORGES, 2001).


Em primeiro lugar, a tabela erra ao apontar que as serpentes peçonhentas possuem cabeça que se destaca do corpo, quando existem serpentes peçonhentas como as corais verdadeiras (gênero Micrurus) que não possuem essa característica e também há boídeos (como a jibóia e a sucuri) que não são peçonhentos e possuem a cabeça assim.

Coral Verdadeira

Jibóia

O mesmo engano ocorre com outros critérios como:

Serpentes peçonhentas possuem escamas pequenas na cabeça – As corais verdadeiras (gênero Micrurus) possuem placas na cabeça, e são serpentes peçonhentas. Já a maior parte das serpentes não-peçonhentas brasileiras, como jibóias e sucuris, possuem escamas pequenas na cabeça.

Escamas lisas ou ásperas (quilhadas) - As escamas das serpentes estão em constante renovação, visto que elas podem fazer diversas mudas ao ano. Além disso, elas perdem muitas placas e escamas ao rastejar, se enroscando em pedras e galhos, o que faz com que esse item e o item acima não sirvam tão bem para identificação de gêneros. Exemplo de que a tabela está errada: Uma cobra d’água (gênero Helicops) possui escamas quilhadas (não-lisas) e não é uma serpente peçonhenta. Já uma coral-verdadeira (gênero Micrurus) apresenta escamas lisas e é peçonhenta.

Serpentes peçonhentas possuem cauda que afina bruscamente - Essa parte do corpo do animal pode variar de acordo com seus hábitos, espécie e sexo, porque nela está inserido o hemipênis, que é a estrutura de cópula dos machos. O fato da cauda afinar ou não nada tem a ver com a presença de peçonha e aparelho inoculador. Porém, realmente é possível identificar alguns indivíduos observando sua cauda (obviamente que essa não é a única característica a ser observada, mas ajuda a determinar com mais precisão). 
Quando a serpente possui chocalho, ela é do gênero Crotalus (cascavel); se a cauda de uma serpente que possui fosseta loreal for comum, esta é uma serpente dos gêneros Bothrops, Bothriopsis ou Porthidium (diferentes tipos de jararaca, e todas causam acidentes tratados com o mesmo tipo de soroterapia); se a cauda tem escamas eriçadas, é do gênero Lachesis (surucucu).
Em ordem: caudas de Bothrops, Crotalus e Lachesis.




Cascavel com seu chocalho característico


Padrões de coloração - Isso também não possui relação com a presença ou não de aparelho inoculador, mas podem estar relacionados com dimosfismo sexual, variabilidade genética (albinismo, xantinismo, melanismo), variação ontogenética (quando o filhote apresenta coloração diferente do adulto da mesma espécie), entre outros fatores.


Serpentes peçonhentas possuem olhos com pupilas verticais - A presença das pupilas verticais em ofídios nada tem a ver com a presença de peçonha e aparelho inoculador: as pupilas tendem a ser verticais em animais noturnos e crepusculares, e mais arredondadas naqueles que são diurnos. De certa forma, é oposto do que ocorre com os gatos. Exemplo de que a tabela está errada: A cobra-papagaio (Corallus) possui pupilas verticais e não é peçonhenta, ao passo que as corais verdadeiras (peçonhentas) as possuem circulares.


Cobra Papagaio
Cobra Coral

Serpentes peçonhentas repousam durante o dia e são ativas às noite – Apesar do pico de atividade das serpentes peçonhentas ser no crepúsculo, elas sair durante o dia para realizar termorregulação, por exemplo.

Quando é perseguida, uma serpente peçonhenta toma atitude de ataque, pois sabe que pode inocular veneno – Na realidade, o comportamento das serpentes quando encontram o homem depende mais da espécie e do “temperamento individual” de cada uma delas. Além disso, serpentes áglifas (sem presas inoculadoras de veneno) também podem desferir botes, mesmo sem poder envenenar ninguém de fato, apenas como forma de intimidação quando se sentem ameaçadas. 

Ao analisarmos esses itens individualmente, notamos o quanto inexata e precária é a tabela veiculada em livros didáticos e sites escritos por leigos no país. É possível encontrar muitos endereços eletrônicos aparentemente confiáveis, cujo conteúdo possui inúmeros erros. Por isso, é essencial que cada professor de Biologia se informe sobre esses erros e saiba esclarecê-los - até porque, é uma questão não somente de educação, mas de saúde pública. Mesmo que os próximos livros didáticos não sejam mais impressos assim, ainda haverá livros antigos nas prateleiras de bibliotecas escolares, com diversas informações incorretas.

A identificação das ideias equivocadas que as pessoas têm sobre o assunto é fundamental para que se possam oferecer respostas mais adequadas a elas, eliminando essas inverdades do imaginário popular e, com certeza, poupando a vida de muitos animais e homens.

Para maiores informações, envie e-mail para swebber7@hotmail.com

Fontes utilizadas para a pesquisa e indicações de boas leituras:
BORGES, Roberto Cabral. Serpentes Peçonhentas Brasileiras: Manual de identificação, prevenção e procedimentos em caso de acidentes. São Paulo: Atheneu, 2001

CARDOSO, João Luiz da Costa et al. Animais Peçonhentos do Brasil: Biologia, Clínica e Terapêutica dos Acidentes. 2ª São Paulo: Sarvier, 2009

LEMA, Thales de. Os Répteis do Rio Grande do Sul: Atuais e Fósseis - Biogeografia - Ofidismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002